Sunday, February 28, 2010

BALANÇO MENSAL 02



"Claro que se tem medo que alguém nos entre pelos olhos. Mas podes arder. Para a tua temperatura sou mercúrio, linhas de mão, lábio e sopro. Atravesso-te porque me atravessas e onde somos corsários rendemo-nos ao encanto da devolução.

Tu e eu à porta de um lugar que vai fechar tudo numa árvore. Aqui onde os minutos são a rua em que nos sentamos toda a tarde à espera do silêncio, onde o teu corpo pesa a medida exacta do meu desejo.

Sou um animal. Necessito diariamente da transfusão de uma enorme quantidade de calor. Tocas-me?"


Vasco Gato, A paixão e prisão de Egon Schiele, Lisboa: &etc, 2005, p. 59.

Saturday, February 27, 2010

IMAGENS DE ÁGUA 6



"E é precisamente na cinza que ela se constrói com
o rosto reflectido na lua. Desliza para fora de um
astro enevoado como se fosse essa ave azul.
Ou o monstro em seu lugar, saltando para o dorso
de uma zebra e esvoaçando depois rente à madeira.
Tudo se dilui num pântano em que o espelho é o seu
próprio corpo e as sombras se confundem com as casas.
Porque nesse lugar as mulheres são possuídas pela
escuridão e aos homens cabe morrer ensanguentados.
Para que a luz ressuscite e o pedreiro a veja,
subitamente, num valado, despindo-se entre as sebes,
enquanto no meio dos malmequeres, o anjo,
de joelhos nus, vai tocando o desespero."


Jaime Rocha, Os Que Vão Morrer, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 39.

Friday, February 26, 2010

IMAGENS DE ÁGUA 5




"Sexto Espírito

Habito as trevas da noite.
Na luz da tua magia
Porque me vens torturar?

Sétimo Espírito

Antes da criação, reinava eu
Sobre a estrela que rege o teu destino;
Nunca outro mundo mais puro ou sublime
Nos ares girou na órbita do sol;
Tinha o seu curso livre e regular,
Nenhum mais belo o espaço abrigava.
Quando a hora soou - ei-lo tornado
Massa errante de chamas sem ter forma,
Cometa vagabundo, maldição
Ameaçando o universo inteiro.
Por sua inata força, ia girando,
Sem curso, sem esfera, desregrado,
Disforme na sua luz no firmamento,
Terrível monstro do mais alto céu!
E tu! Nascido sob tal domínio,
Tu, verme desprezível, que me tens
Sujeito a um poder ( que não é teu
e que tu só deténs para seres meu)
Vem descendo por este breve instante,
Onde espíritos fracos se inclinam
E com um ser debatem como tu -
Criatura do Pó, o que pretendes?

Os Sete Espíritos

O oceano, a terra, montes e noite,
O ar, o vento, o astro do destino,
Criatura do Pó, esperam tuas ordens!
Aqui nos tens, espíritos invocados -
Nascido de Mortais, o que nos queres?

Manfredo - O esquecimento quero.

Primeiro Espírito - Esquecer o quê? Ou quem? Porquê?

Manfredo - O que trago comigo. Em mim o podeis ler;
Bem o sabeis - não posso revelar."


Lord Byron, Manfredo, trad. João Almeida Flor, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, pp. 31-33.

Wednesday, February 24, 2010

IMAGENS DE ÁGUA 4

"Outrora, quando vertia amargas lágrimas, quando, diluída na dor, a minha esperança se desfez e eu me encontrava sozinho sobre o montículo que encerra em negro e estreito espaço a imagem da minha vida - só, como jamais alguém esteve, impelido por um medo indizível - inerme, tão somente com um único pensamento ainda, o da carência."


Novalis, Os Hinos à Noite, trad. Fiama Hasse Pais Brandão, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 25.

Tuesday, February 23, 2010

IMAGENS DE ÁGUA 3



"Therefore, when we build, let us think that we build for ever. Let it not be for present delight, nor for present use alone; let it be such work as our descendants will thank for us, and let us think, as we lay stone on stone, that a time is to come when those stones will been held sacred because our hands have touched them, and that men will say as they look upon the labour and wrought substance of them. 'See! this our fathers did for us.' For, indeed, the greatest glory of a building is not its stones, nor in its gold. Its glory is in its Age, and in that deep sense of voicefulness, of stern watching, of mysterious sympathy, nay, even of approval or condemnation, which we feel in walls that have long been washed by the passing waves of humanity. It is in their lasting witness against men, in their quiet contrast with the transitional character of all things, in the strength which, through the lapse of seasons and times, and the decline and birth of dynasties, and the changing of the face of the earth, and of limits of the sea, maintains its sculptured shapeliness for a time insuperable, connects forgotten and following ages with each other, and half constitutes the identity, as it concentrates the sympathy of nations: it is in that golden stain of time, that we look for the real light, and colour, and preciousness of architecture (...)"


John Ruskin, The Lamp of Memory, London: Penguin Books, 2008, p. 14.

Monday, February 22, 2010

IMAGENS DE ÁGUA 2



"Vestígios?
Cintilações. Era?, não era. Mas isso já não interessa. Não é tanto encontrar: é o momento do quase reconhecimento. Não é voltar sempre às mesmas coisas. É voltar a uma sensação que está antes disso e que diz: parecia mesmo que, e, afinal, não. (...)

Interessa-lhe o desfasamento? Quando a pessoa não encaixa.
Acho que deve haver sempre qualquer coisinha que não encaixa. Se encaixar completamente, é muito mau sinal. O desajustamento: penso que é bom que as coisas batam certas, mas não completamente. Há pouco estava a falar do meu trabalho como se ele fosse uma fuga ao erro, e não. Nele, há sempre qualquer coisa que não bate certo. Mesmo quando bate certo, como dizia Jorge Luis Borges, há que introduzir o erro à maneira árabe. Para marcar a diferença em relação à divindade. Uma coisa sem erro é pouco interessante.

Assim, percebe-se melhor o seu fascínio pelo jogo e pelo acaso. Esses podem produzir o erro. É o elemento que não se controla.
É bom não controlar tudo. Há pessoas que tentam controlar tudo. Assustam-me imenso."


Jorge Molder, entrevistado por Anabela Mota Ribeiro, in "Molder, modo de usar". Pública, 07-02-10, p. 48.

Sunday, February 21, 2010

IMAGENS DE ÁGUA 1

"Se desejas que os teus filhos, a tua mulher ou os teus amigos vivam para sempre, és insensato. É que, como isso, desejas que o que não depende de ti esteja na tua dependência, que o que não te pertence seja pertença tua. Bem assim, se desejas que o teu escravo não cometa qualquer falta, és louco. É que desejas, com isso, que a maldade não seja maldade, antes outra coisa qualquer. Se, pelo contrário, não queres frustrar os teus desejos, isso sim já está ao teu alcance. Empenha-te então apenas no que depende de ti."


Epicteto, A Arte de Viver, trad. Carlos de Jesus, Lisboa: Edições Sílabo, 2007, p. 34.

Saturday, February 20, 2010

ANTES DO DEGELO



"- Não sei quem é. Francamente! - disse Genaro.
- O mundo está cheio de gente famosa que não se sabe quem foi. Nem onde fica a cidade de Urábá que, noutros tempos, teve a sua importância. Cada vez mais me convenço que o Quixote é uma sátira monumental. Pode ler-se às avessas e é um romance existencialista.
- Ama e diz o que quiseres. É um programa mediático perfeito.
- Antes do degelo as coisas eram inspiradas, depois passaram a ser vulgares e até repulsivas. Na caverna, antes do degelo, tudo aconteceu ao mesmo tempo: a técnica, a arte e a mística. Inventou-se tudo, pintou-se o movimento dos bisontes e fez-se amizade com Deus."


Agustina Bessa-Luís, Antes do Degelo, 2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2004, p. 50.

Friday, February 19, 2010

ASSIM OS VIVOS



"Assim, os vivos também se tornaram fantasmas: bato-lhes
à porta da alma, vagueio num descampado de sentimentos,
chamo-os - e vejo-os partir. Construo a solidão
com os pedaços das imagens que me deixaram. Ergo
edifícios a partir de memórias, de palavras, de gestos que
ficaram das nossas conversas, quando o tempo se reduzia
ao instante que vivíamos e nenhum futuro nos impunha
a sua sombra. Agora, porém, a que estação te irei buscar? Em
que banco de jardim te irei surpreender, olhando essa manhã
que marca a separação dos amantes? Limito-me a esperar
que esta porta se abra, uma vez mais, e a primavera
entre para este quarto onde a noite se instalou."


Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 45.

Thursday, February 18, 2010

LE SUBLIME EST UN DÉPART



"É uma separação - o sublime.
Uma parte de nós, de nós se afasta,
desencontra-se da nossa companhia,
e pelos céus inicia outra jornada.

Haverá um adeus mais terno
que o que nos dizemos no ponto limite da arte?
E a música - não é esse olhar fraterno que parte
de nós para nós, no momento derradeiro?"


Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, trad. Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 91.

Wednesday, February 17, 2010

QUADRAGINTA



"O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstracção
Que fica uma possibilidade perpétua
Somente num mundo de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Apontam para um só fim, sempre presente.
Sons de passos ecoam na memória,
Descem o caminho que em nós não seguimos
Em direcção à porta por nós nunca aberta
Para o jardim de rosas. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espírito.
Mas com que propósito
Perturbam o pó numa taça de folhas de rosa
Não sei."


T.S. Eliot, Quatro Quartetos, trad. Gualter Cunha, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 25.

Tuesday, February 16, 2010

CARNEM VALLE


"Segundo uma certa corrente, a origem dos mascarados liga-se ao culto dos antepassados, considerados detentores privilegiados de poderes sobre as bases essenciais da sobrevivência do indivíduo no plano físico e mental, velando pela fertilidade dos campos, pela fecundidade dos homens e dos animais, pela manutenção da lei cívica e moral, e da ordem por eles modelada e estabelecida. (...)
A variedade das máscaras portuguesas é escassa. Sensivelmente de tipo realista, reproduzem frequentemente um rosto humano; mas é visível a intenção de o desumanizar recorrendo não raro a artifícios simples e ingénuos, designadamente ao exagero de certos traços fisionómicos, assimetrias, inclusão de elementos simbólicos conotados com o imaginário diabolístico, etc."


Benjamin Enes Pereira, "Máscaras Portuguesas", in Helder Ferreira e Teresa Perdigão, Máscaras em Portugal, Lisboa: Medialivros, 2003, p. 9.

Sunday, February 7, 2010

DA ALMA FILOSÓFICA

"Enfin Micromégas leur dit: «Puisque vous savez si bien ce qui est hors de vous, sans doute vous savez encore mieux ce qui est en dedans. Dites-moi ce que c'est que votre âme, et comment vous formez vos idées.» Les philosophes parlèrent tous à la fois comme auparavant; mais ils furent tous de différents avis. Le plus vieux citait Aristote, l'autre prononçait le nom de Descartes; celui-ci, de Malebranche; cet autre, de Leibniz; cet autre, de Locke. Un vieux péripatéticien dit tout avec confiance: «L'âme est une entéléchie, et une raison par qui elle a la puissance d'être ce qu'elle est. C'est ce que déclare expressément Aristote, page 633 de l'édition du Louvre. 'Εντελεχεία έστι' - Je n'entends pas trop bien le grec, dit le géant. - Ni moi non plus, dit la mite philosophique. -Pourquoi donc, reprit le Sirien, citez-vous un certain Aristote en grec? - C'est, répliqua le savant, qu'il faut bien citer ce qu'on ne comprend point du tout dans la langue qu'on entend le moins.»"


Voltaire, Micromégas, Paris: GF Flammarion, 2001: pp. 63-64.

Saturday, February 6, 2010

MANIFESTOS


"Foi-me preciso descobrir que:

a lógica é a ciência de gerir os rendimentos da estupidez;

os políticos não são realmente galinhas porque cacarejam e não põem ovos;

as pastas dos executivos levam dentro aranhas para urdirem as teias que nos imobilizam;

os militantes de todos os partidos têm pele de camisas enforcadas;

a família é um cardume de piranhas ao redor da carcaça de uma vaca sagrada;

a sociologia é uma completa falta de humor perante a decadência;

os gestores destilam um suor frio que nos constipa;

as nações içam as bandeiras para porem o falo a pino e masturbarem-se;

as esquerdas e as direitas resultam do pacto de não inverterem os papéis;

o socialismo é um estratagema para negar aos exploradores o direito ao desaparecimento;

o liberalismo é uma manha do Estado para forjar algemas com a liberdade;

os intelectuais são uma chatice com que o Criador não contava;

sendo a educação a providência dos imbecis que são em maior número, o mundo está imbecilizado pela educação;

o sistema é a creche da debilidade mental e a vala comum da inteligência;

a economia é adquirir-se o vício do fumo porque se comprou um isqueiro;

dos vencidos não reza a história porque se renderam à razão,


para concluir que:


chegou a hora romântica dos deuses nos pedirem a desobediência (...)"



Natália Correia, A Ilha de Circe, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983, pp. 9-11.

Tuesday, February 2, 2010

PARA R. L. DE F., QUE NÃO CHEGOU A DIZER DANIEL FARIA


"Recusa, amigo, da lide o ardil que, fátuo,
Nenhum deus quer ou lembra;
E entremos no jardim como quem no sagrado
Do que se ignora entra.

Na fonte, ao tempo alheio, voz de água estremecida,
Gorgoleja o delfim
A área que reúne todo o pouco da vida
No esplendor do jardim.

Aos fados que nos fiam o estreito acontecer,
Só na ilusão ilesos,
Sob as tílias amemos: é o estrito dever
De agradarmos aos deuses.

Flores não colhas, porém; sem nexo, se colhidas,
Vão morrer-te nos braços.
Deixa-as serem na haste o hálito da vida
Que te perfuma os passos.

Leves, instantâneas rosas indiferentes às máscaras
Que apodrecem leprosas,
Concedem-nos os deuses para que as nossas almas
Não pesem mais que as rosas.

Num lapso de verdade de que és pálido súbdito
Por decretos ignotos,
O jardim é o instante em que olhamos o mundo
Com magnólias nos olhos."


Natália Correia, "O Armistício", in Antologia Poética, org. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, pp. 217-218.

AO FEVEREIRO E AO RAPAZ PERDOA TUDO QUANTO FAZ



"Le cartésien prit la parole, et dit: «L'âme est un esprit pur qui a reçu dans le ventre de la mère toutes les idées métaphysiques, et qui, en sortant de là, est obligée d'aller à l'école et d'apprendre tout de nouveau ce qu'elle a si bien su, et qu'elle ne saura plus. - Ce n'était donc pas la peine, répondit l'animal de huit lieues, que ton âme fût si savante dans le ventre de ta mère, pour être si ignorante quand tu aurais de la barbe au menton. Mais qu'entends-tu par esprit? - Que me demandez-vous lá? dit le raisonneur; je n'en ai point d'idée; on dit que ce n'est pas de la matière. - Mais sais-tu au moins ce que c'est que de la matière? - Très bien, répondit l'homme. Par exemple, cette pierre est grise, et d'une telle forme, elle a ses trois dimensions, elle est pesante et divisible. - Eh bien! dit le Sirien, cette chose qui te paraît être divisible, pesante et grise, me dirais-tu bien ce que c'est? Tu vois quelques atributs: mais le fond de la chose, que connais-tu? - Non, dit l'autre. - Tu ne sais donc point ce que c'est que la matière.»"


Voltaire, Micromégas, Paris: GF Flammarion, 2001: pp. 64-65.