Tuesday, December 31, 2013

NA DIVINA HORA DE NADA ESPERAR



"Quando a lua se envolve em túnica ligeira
E um alado segredo no ar fragrante ondeia, 
De Artemisa é a noite virgem e alta. Suave. 
Serenamente cheia de intacta novidade. 

No tempo isento escorre o sentimento casto
De terra e céu fundidos num delírio ermo e vasto, 
Sob um pudor de estrelas que tremem se as olhamos, 
Cai uma folha e fremem delicados os ramos. 

Alta e branca Artemisa entra no mar e desata 
A trança. Boiam na água seus cabelos de prata:
E a sombra num odor branco por jasmins a brotar
Escorre para os brilhos silenciosos do mar. 

Sem peso os pensamentos seguem inefáveis cursos
Que a brisa traz de um bosque interdito aos impuros. 
De leve quer voar a noite e só suspende
O seu voo uma haste de avencas que a prende. 

Alvo silêncio a lua impõe à treva e airosas
Nesse halo dançam fadas encantadas em rosas;
E tudo docemente vai para os termos divinos
De uma paz final. Sonho? Ou sonhada me sinto?

Ecoam no infinito cristais e nesse acorde
Minha alma é uma virgem prometida ao licorne. 
Ó sozinha e divina hora de nada esperar!
Apenas caem pérolas diáfanas do luar."


Natália Correia, Antologia Poética, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, pp.224-225.

A ETERNIDADE



"A Eternidade é o sepulcro em que repousam as horas mortas. A Eternidade é a sombra do tempo - o tempo estagnado em abismáticas funduras. 
E o tempo é a Eternidade viva, a Eternidade em acção dramática e corpórea."


Teixeira de Pascoaes, O Bailado, Lisboa: Assírio & Alvim, 1987, p. 53. 

Monday, December 30, 2013

IMPRESSÃO (SERVINDO AINDA DE HOMENAGEM A WOJCIECH KILAR)



"- Há qualquer coisa nela que repugna - disse a irmã mais velha, cujo vocabulário agressivo era inexistente. Quando se dava ao trabalho de censurar alguém, limitava-se a chamar-lhe "uma pessoa de critério". Chamara assim a sogra odiosa, a quem devia vexames imperdoáveis e que a levara à beira da loucura.  - Tudo nela tem um ar sinistro, a começar pela beleza. - Acha-a assim bonita? - disse a irmã mais nova, tocada por um pressentimento de animal doméstico que vê o seu território invadido. - Não sei bem explicar... A beleza dela confunde-se com uma espécie de génio."


Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão, 5ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 20. 

Sunday, December 29, 2013

O DESCONSERTO



"«Diz que não fala inglês», disse a Srª Nur, a minha bela tradutora. O presidente tinha falado e desviado o olhar.«Prefere falar em turco, embora fale consigo em alemão ou italiano.»
«Va bene», disse eu. «Allora, parliamo in italiano. Ma dove imparava questa lingua?»
O presidente dirigiu-se à Srª Nur em turco. 
«Diz ele: "Fala alemão?"»
«Não muito bem.»
O presidente disse mais qualquer coisa. 
«Ele falará em turco.»
«Pergunte-lhe o que é que ele faz. É escritor?»
«Essa», disse o homem através da Srª Nur, «é uma pergunta sem sentido. Uma pessoa não pode dizer em poucas palavras o que faz ou o que é. Isso leva meses, por vezes anos. Posso dizer-lhe o meu nome. Mais do que isso tem de descobrir por si.»
«Diga-lhe que dá muito trabalho», disse eu, e afastei-me."


Paul Theroux, O Grande Bazar Ferroviário, trad. José António Freitas e Silva, Lisboa: Quetzal, 2011, pp. 69-70. 

Saturday, December 28, 2013

VER


"Vivemos, porque os nossos olhos encarceraram as cousas e os seres em pequenas formas limitadas. Que seria de nós se as víssemos nos seus aspectos verdadeiros? A presença de uma árvore petrificar-nos-ia, de repente!Vivemos, porque os nossos olhos dão às cousas uma aparência banal e familiar. Se pudéssemos ver a nossa dor! Desvanescer-se-ia por encanto. Nada resiste ao fogo visionário que lampeja nas pupilas. Os desertos e as ruínas - uma obra dos nossos olhos, não do tempo. Os astrónomos, espreitando as regiões celestes, afugentaram os anjos e os deuses. O telescópio é que matou o Paganismo e converteu o Infinito num deserto.O que descobrimos do mundo é o que resta do seu desencanto, ao ser contemplado pelos homens; - os escombros dum incêndio."

Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo, in Obras Completas, IX, Amadora: Livraria Bertrand, 1973, p. 120. 

Friday, December 27, 2013

SAIR



"Aqueles apitos cantavam fascínio: os caminhos-de-ferro são bazares irresistíveis, a serpentear perfeitamente equilibrados e independentes da paisagem, melhorando o nosso estado de espírito com velocidade e nunca perturbando a nossa bebida."

Paul Theroux, O Grande Bazar Ferroviário, trad. José António Freitas e Silva, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 23. 

Thursday, December 26, 2013

DIA FRIO



"A ave que faltava ao dia
para que anoitecesse
em teus olhos seu voo principia
sobre meus olhos desce. 

São suas asas ou tuas pálpebras
o que em teus lábios roças?
Ou só o frio, frias lágrimas
numa face que é nossa?"


José Bento, Silabário, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 237. 

Wednesday, December 25, 2013

À NOITE DE NATAL




"Era noite de inverno longa e fria, 
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado, 
Mudava a folha cor, que ter soía. 

Quando nas palhas duma estrebaria, 
Entre dous animais brutos lançado, 
Sem ter outro lugar no povoado
O Minino Jesus pobre jazia. 

- Meu filho, meu amor, porque quereis
(Dizia Sua Mãe) nesta aspereza 
Acrescentar-me as dores que passais?

Aqui nestes meus braços estareis;
Que, se Vos força amor sofrer crueza, 
O meu não pode agora sofrer mais."


Frei Agostinho da Cruz, Poesias Selectas, 2ª ed., Porto: Editorial Domingos Barreira, s.d., pp. 41-42. 

Tuesday, December 24, 2013

LADAINHA PARA QUALQUER NATAL



"Não seja esta noite, agora e sempre, 
Igual às outras noites. 
Não seja esta noite, agora e sempre, 
Igual às outras noites:
Tumba de carne viva em ódio amortalhada, 
Anunciando sangue e pranto e morte. 
Não seja esta noite, agora e sempre, 
Igual às outras noites. 
Que esta noite não seja para sempre
De fome pra lá de tantas portas
Como flor viçosa em campa rasa. 
Que esta noite não seja para sempre
De amor vendido a horas mortas
E o pudor lembrando e a raiva queimando. 

Não seja esta noite, agora e sempre, 
Igual às outras noites. 
Não seja esta noite, agora e sempre, 
Igual às outras noites:
Chaga aberta, como rubra flor de pesadelo, 
Escorrendo sangue e pranto e morte. 
Não seja esta noite, agora e sempre, 
Igual às outras noites. 
E seja para sempre esta noite
Cheia de graça na terra dos homens. 

Assim seja"


Tomaz Kim, Obra Poética, Lisboa: IN-CM, 2001, p. 248. 

Monday, December 23, 2013

ANTEVÉSPERA



"Para que pedir às noites sem fim o mistério, 
e à infância que passou a saudade, 
e ao teu corpo virgem a poesia?

Para que tentar ouvir no vento um apelo, 
e no futuro uma esperança
e no teu amor a resignação?

Para quê? - Se um silêncio implacável
não tardará a cair sobre os homens!"


Tomaz Kim, Obra Poética, Lisboa: IN-CM, 2001, p.135. 

Sunday, December 22, 2013

O INVERNO



"Agora que já é inverno (ah! Dezembro, 
tão culpado de nostalgia) temo, Senhor, 
que os teus olhos já não sejam crédito 
dos meus dias nem destes versos. O amor, 

que de todas as nossas aflições poderá ser
a mais inesquecível, a brisa amarga que nos perdoou
a vida. Em Deus ou na morte ou noutra matéria
tão insubstancial encontrarei

a desculpa volúvel da minha escrita. 
Temo, Senhor, que a sombra dos teus caminhos
já só me seja calma. Aceita, canção, 
que salva do desejo, te salves da mágoa."


José Alberto Oliveira, O Que Vai Acontecer?, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 28. 

SOLSTÍCIO



"Assim o sábio Deus nos concede algum sentido da profecia mas não demasiado; tal como o faz com os pássaros que sentem a chegada do Inverno mas não a noite gelada que os fará tombar dos ramos."

Mary Renault, O Jovem Persa, trad. Mário Avelar, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 336. 

Saturday, December 21, 2013

ANIVERSÁRIO



"Tudo é sabido onde
alguma coisa fala de si própria
e de falar de isso
e de falar de falar. 

Aquilo que está cada vez mais longe, 
a pura falta de coisa nenhuma, 
é o que Conhece e É
a sua indizível inexistência. 

Nós, os maus, onde 
é fora de fora de tudo, 
eternamente regressamos
ao sítio de onde nunca saímos."


Manuel António Pina, Todas as Palavras, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 86. 

Friday, December 20, 2013

MARINHA



"Os homens e as mulheres
adormecidos na praia
que nuvens procuram 
agarrar?

No sono das mulheres
cavalos passam correndo
em ruas que soam 
como tambores.

Os homens têm espelhos de bolso
onde os gestos das amadas
(as amadas demoradas
se repetem). 

Vi apenas que no céu do sonho
a lua morta já não mexia mais."


João Cabral de Melo Neto, Pedra do Sono, in Poesia Completa, Lisboa: IN-CM, 1986, p. 448. 

Thursday, December 19, 2013

EXTREMIDADES



"Agora tu e eu somos cada um
em si
e na medida em que paramos
nas extremidades do tempo
vemos reaparecer o perfil do futuro
alguém diz: «A paixão
é o predador e a vítima, 
o amor é um espelho no deserto»"


Laureano Silveira, Os Secretos Felinos, Porto: Limiar, 1991, p. 32. 

Wednesday, December 18, 2013

TAPETE D' ÁGUA


"Num tapete de água
vou bordando os meus dias, 
os meus deuses e as minhas doenças. 

Num tapete de verdura
vou bordando os meus sofrimentos vermelhos, 
as minhas manhãs azuis,
as minhas aldeias amarelas e os meus pães de mel amarelos também. 

Num tapete de terra
vou bordando a minha efemeridade. 
Nele vou bordando a minha noite
e a minha fome, 
a minha tristeza
e o navio de guerra dos meus desesperos, 
que vai deslizando p'ra mil outras águas, 
para as águas do desassossego, 
para as águas da imortalidade."


Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno, trad. José A. Palma Caetano, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 125. 

EFÉMERO


"Às vezes tudo se ilumina de uma intensa irrealidade
E é como se agora este pobre, este único, este efêmero instante do mundo
Estivesse pintado numa tela, sempre..."


Mário Quintana, A cor do invisível, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 66. 

Tuesday, December 17, 2013

A COR (HOMENAGEM A MAGRITTE)



"O seu único defeito foi o de insuflar-me durante algum tempo um cinismo desabusado pelas coisas do amor, que, dada a minha idade e a minha experiência, devia parecer mais divertido do que impressionante. Eu repetia muitas vezes para mim certos conceitos lapidares, entre outros este, de Oscar Wilde: «O pecado é a única nota de cor viva que subsiste no mundo moderno.» Tornava-o meu com absoluta convicção, mais segura ainda, penso, do que se o tivesse posto em prática. Acreditava que a minha vida se poderia fazer sobre esta frase, inspirar-se nela, brotar dela como uma perversa imagem de Épinal: esquecia a morte do Tempo, a descontinuidade, os bons sentimentos quotidianos. Em imaginação criava uma vida de baixezas e de torpezas."


Françoise Sagan, Bom Dia Tristeza, trad. Maria da Graça Azambuja, Lisboa: Ulisseia, 1954, pp. 39-40. 

Monday, December 16, 2013

HOMENAGEM A MANET ("LE BALCON")



"Para nós, como para outros fugitivos, 
Como as inúmeras flores que não sabem contar
E todos os bichos que não precisam de lembrar, 
É no presente que estamos vivos."


W.H. Auden, Outro Tempo, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2003, p. 119. 

Sunday, December 15, 2013

RUMO



"A este sentimento desconhecido, cujo tormento, cuja doçura me obcecam, hesito em pôr o nome, o belo e grave nome de tristeza. É um sentimento tão completo, tão egoísta, que quase me envergonho dele, uma vez que sempre considerei a tristeza um tanto convencional. Não a conhecia ainda; mas somente o tédio, a pena e raramente o remorso. Hoje sinto-a envolver-me, enervante e doce como uma seda, a separar-me dos outros."


Françoise Sagan, Bom Dia Tristeza, trad. Maria da Graça Azambuja, Lisboa: Ulisseia, 1954, p. 19. 

AMADOR



"Qué amador tan desdichado!
que gané
em la gloria d'amadores
el más alto y mejor grado, 
por la fe
que tuve com mis amores.
Y assí como Lucifer 
se perdió por se pensar
igualar com su señor,
assí me vine a perder
por me querer igualar
en amor con el Amor."


Jorge Manrique, Poesías Completas, 20ª ed., Madrid: Espasa-Calpe, 1997, p. 87. 

Saturday, December 14, 2013

MULTIDÃO



"Multidão é meu nome
e a minha habilidade, 
a de estar vivo. 

Multidão é meu nome.
Quando sofro
e as dores me comprimem
com suas rodas de vento
- não sou um homem -
sou o elemento
entre mim e o que some. 

Multidão é meu nome
e se de longe venho, 
não sou eu me movendo. 
Almas muitas se entendem
quando estão possuídas
de comum andamento. 

Alma geral é a cela
de símbolos, e o mundo
a janela obscura
onde as coisas se afundam. 

Assim, doutos e doidos, 
com cautelas e afoitos
vivemos. 
E viver é uma incrível violência. 
Nenhuma ciência é maior
que a de estar vivo."


Carlos Nejar, Antologia Poética, org. António Osório, Cascais: Editora Pergaminho, 2004, pp. 89-90. 

MISTÉRIO



"Assumi a levedura,
o fogo. 
E me banhei duas vezes
no mesmo corpo.

Nenhuma ciência é maior
que a de estar vivo."


Carlos Nejar, Antologia Poética, org. António Osório, Cascais: Editora Pergaminho, 2003, p. 88. 

Friday, December 13, 2013

ESPERA




"Ai de quem espera se desespera
se arranha em garra de fera
a sua cabeça esférica
a sua carne tangente
ao sossego de uma hera!

Ai de quem espera sem lenta
argamassa de paciência
em calma de estratosfera!

Ai de quem espera se tenta
um álcool que lhe aguente
a sisudez dessa espera!"


João Rui de Sousa, Lavra e Pousio, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005, p. 110. 

Thursday, December 12, 2013

POTRO



"O mundo é uma mentira, a glória - fumo, 
A morte - um beijo, e esta vida um sonho
Pesado ou doce, que se esvai na campa!

O homem nasce, cresce, alegre e crente
Entra no mundo c'o sorrir nos lábios, 
Traz os perfumes que lhe dera o berço, 
Veste-se belo d' ilusões douradas, 
Canta, suspira, crê, sente esperanças, 
E um dia o vendaval do desengano
Varre-lhe as flores do jardim da vida
E nu das vestes que lhe dera o berço
Treme de frio ao vento do infortúnio!
Depois - louco sublime - ele se engana, 
Tenta enganar-se p'ra curar as mágoas, 
Cria fantasmas na cabeça em fogo, 
De novo atira seu batel nas ondas, 
Trabalha, luta e se afadiga em balde
Até que a morte lhe desmanchou os sonhos. 
Pobre insensato - quer achar por força
Pérola fina em lodaçal imundo!
- Menino louco que se cansa e mata
Atrás da borboleta que travessa
Nas moitas do mangal voa e se perde!"


Casimiro de Abreu, As Primaveras, 6ª ed., Porto: Lello & Irmão, 1945, p. 166. 

Wednesday, December 11, 2013

PARA A MEMÓRIA DE NADIR AFONSO



"Como as marés, o sangue, passivo, flui:
Apelo e repulsa de astro ignoto, 
Metade na escuridão amortalhado...

A carne, pelas quatro estações pautada, 
Mundo vegetal na flor e fenecer, 
Poderá vingar noutro fruto bichado. 

E os ossos - que sirvam para o sábio, 
Perplexo, no futuro, desenterrar...
E o menino, na escola, decorar!"


Tomaz Kim, Obra Poética, Lisboa: IN-CM, 2001, p. 262. 

Tuesday, December 10, 2013

AVESSAS



"Para que pedir às noites sem fim o mistério,
e à tua infância que passou a saudade, 
e ao teu corpo virgem a poesia?

Para que tentam ouvir no vento um apelo, 
e no futuro uma esperança
e no teu amor a resignação? 

Para quê? - Se um silêncio implacável
não tardará a cair sobre os homens!"


Tomaz Kim, Obra Poética, Lisboa: IN-CM, 2001, p. 135. 

PODER



"Ti Pantaleão suspendeu o copo na mão e fitou a malta. 
- Pois cada home, quando nasce, traz uma procuração. Procuração com  plenos poderes, que Deus entrega a cada menino ao nascer. No princípio do mundo o Padre Eterno pegou num pedaço de barro, meteu-lhe as mãos, amassou-o, modelou-o e fez um bonecro. Depois com um sopro, deu-lhe a vida. Era Adão. Ao fim do trabalho, o Padre Eterno estava mesmo cansado. E o senhor Deus pensou: « Vou encarregar Adão agora do serviço ». E entregou a nosso pai Adão uma procuração com plenos poderes para continuar, pelos tempos fora, a sua obra. Adão e os filhos de Adão, até nós. Por isso vos digo: « Cada home traz consigo um tal poder que... Plena procuração de Deus, entendem?, camaradas. Assim colaboramos na obra da criação, assim encarnamos Deus no seu infinito poder.»". 


Papiniano Carlos, O Rio na Treva, Porto: Editorial Inova, 1975, p. 63. 

Sunday, December 8, 2013

SOBREVIVÊNCIA



"E sinto, de novo, com horror, como é fraca, miserável e cobarde a substância de que deve ser feita essa coisa a que nós chamamos com ênfase, alma, espírito, sentimento e dor, porque tudo isso, mesmo no mais alto paroxismo, é incapaz de esmagar completamente o corpo que sofre, a carne torturada. Pois, apesar de tudo, o sangue continua a correr e a gente sobrevive a horas semelhantes, em vez de morrer e de se abater como uma árvore fulminada pelo raio."


Stephan Zweig, Vinte e Quatro Horas na Vida de Uma Mulher, 3ª ed., trad. Alice Ogando, Porto: Livraria Civilização, 1940, p. 169. 

Saturday, December 7, 2013

IMOLAR



"Numa delas, disse-me: «Ficaste muito triste por eu ter incendiado Persépolis?»
«Não, meu Senhor, nunca lá estive. Mas porque a destruístes?»
- Não a destruí, imolei-a. O deus inspirou-nos.» À luz da candeia vi o seu rosto como o de um cantor arrebatado pela sua melodia. «Cortinas de fogo, pendentes de fogo; mesas postas num grande festim de fogo. E os tectos eram todos de madeira de cedro. Quando lançámos as tochas e o calor nos obrigou a sair, as chamas erguiam-se como uma torrente no céu negro; uma grande queda de fogo, de centelhas pulverizando tudo; bramindo e iluminando tudo no seu percurso para o céu.» Pensei então: não admira que o venerem. Há algo na terra que mais se assemelhe ao divino?"


Mary Renault, O Jovem Persa, trad. Mário Avelar, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 144. 

Friday, December 6, 2013

PRECE



"Deixai o dia morrer e vir a noite...
Deixai vir as sombras, 
Deixai vir as trevas...
Eu quero fugir à dor e à angústia
que vejo em tudo
que o sol ilumina...

Deixai vir a noite e o silêncio...
Deixai vir o manto
que tudo oculta...
Eu quero fugir às pragas e ao pranto
que enchem o dia
e o sol não esconde...

Deixai, deixai vir a noite para sempre!...
Eu quero fugir a esta vida
onde só reina a morte!"


Tomaz Kim, Obra Poética, Lisboa: IN-CM, 2001, p. 54. 

DESAPEGO - CELEBRANDO A VIDA DE NELSON MANDELA



"é difícil sinuoso o trilho da biografia
em um tempo tão quotidiano

só quando piso a esteira do desapego
se faz tranquila a duração"


Miguel-Manso, Santo Subito, Lisboa: os carimbos de Gent, 2010, p. 54. 

Thursday, December 5, 2013

TRISTITIA



"Minh'alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o alvor da aurora
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora. 

E, como a rola que perdeu o esposo,
Minh'alma chora as ilusões perdidas. 
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas. 

E como notas de chorosa endecha
Seu pobre canto com a dor desmaia, 
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia. 

Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio, 
Minh'alma quer ressuscitar os cantos
Um só dos lírios que murchou o estio. 

Dizem que há gozos nas mundanas galas, 
Mas eu não sei em que o prazer consiste. 
- Ou só no campo, ou no rumor das salas, 
Não sei porquê - mas a minh'alma é triste!"


Casimiro de Abreu, As Primaveras, Porto: Lello & Irmão, 1945, pp. 121-122 [ort. at.]. 

DAR



"Os deuses dão a quem soffre
Só mais dor. 
Guardam a espr'ança num cofre, 
Dão ao cofre valor. 

E depois levam-o p'ra fóra
Da vista e da mão, 
P'ra que chore a alma, que chora, 
Chorar sempre em vão."


Fernando Pessoa, Poemas (1915-1920), ed. João Dionísio, Lisboa: IN-CM, 2005, p. 262. 

Tuesday, December 3, 2013

VENTO



"Rumor de vento
E nuvens
dia de glória
desfolhado
coisa a coisa
nos teus olhos
sombra impelida
por que mãos?
na cúpula do mundo
misterioso adeus
que alguém murmura
sem nunca
ter chegado."


Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 176. 

Monday, December 2, 2013

FERIDA


"E havia dignidade neste homem ferido de morte, uma dignidade feita de tensão sobre-humana, diante de toda a gente que o cercava, que se agrupava curiosamente à sua volta para o contemplar e que, logo, se afastava confusamente, como que receosa."

Stephan Zweig, Vinte e Quatro Horas na Vida de Uma Mulher, trad. Alice Ogando, 3ª ed., Porto: Livraria Civilização, 1940, p. 16. 

Sunday, December 1, 2013

PIRA



"Estes aceitaram e foram-lhes devolvidos, de acordo com as regras, os ossos dos seus mortos. Entretanto tinham sido queimados numa pira comum uma vez que não podiam esperar pela assinatura do acordo de paz. A pira era ampla; um grupo de soldados alimentava-a com madeira, outro com cadáveres; arderam do nascer ao pôr-do-sol. Havia mais de mil homens para queimar. As cinzas e os ossos calcinados foram guardados em baús de carvalho, à espera de um cortejo fúnebre."


Mary Renault, Fogo do Céu, trad. Tomás Vaz da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 1994, p. 340. 

Saturday, November 30, 2013

ANOITECER



"No dia seguinte esperava-os uma longa viagem. A lua incidia directamente nos olhos fechados de Heféstion. Suavemente, Alexandre puxou a cortina até meio, com medo que os poderes da noite lhe fizessem mal."


Mary Renault, Fogo do Céu, trad. Tomás Vaz da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 310.

Friday, November 29, 2013

LAGO



"Junto às águas claras do lago Lychnidis, com o lodo do combate já assente, enguias e solhas limpavam os cadáveres que flutuavam à deriva. Os lírios esmagados adormeceram para voltar a florescer no ano seguinte; as acácias brancas caíram como neve com as primeiras brisas e esconderam o sangue. As viúvas choravam os seus mortos, os aleijados retomavam as suas antigas actividades, os órfãos a quem nunca nada faltara conheceram a fome. O povo inclinava-se perante o destino, como perante uma enfermidade do gado ou um granizo fora do tempo sacudindo as oliveiras. Todos, incluindo viúvas e órfãos, foram levar as suas oferendas de agradecimento aos santuários; os ilírios, famosos piratas e mercadores de escravos, podiam ter ganho. Os deuses, compadecidos com as suas ofertas, não lhes revelaram o conhecimento de que apenas haviam sido um meio e não um fim. Na dor, mais que na alegria, o homem aspira a saber que o universo gira em torno de si."

Mary Renault, Fogo do Céu, trad. Tomás Vaz da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, pp. 301-302. 

Thursday, November 28, 2013

TEMPO SEM DEUSES



"Poesia de inverno: poesia do tempo sem deuses
Escolha
Cuidadosa entre restos

Poesia das palavras envergonhadas
Poesia dos problemas de consciência das palavras

Poesia das palavras arrependidas
Quem ousaria dizer:

Seda nácar rosa

Árvore abstracta e desfolhada
No inverno da nossa descrença."


Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Lisboa: Caminho, 2004, p. 85. 

Wednesday, November 27, 2013

ALITERATTO






"Assim o Minotauro longo tempo latente
De repente salta sobre a nossa vida
Com veemência vital de monstro insaciado"


Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, Lisboa: Caminho, 2004, p. 51. 

Tuesday, November 26, 2013

PERDER



"Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar"


Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Lisboa: Caminho, 2004, p. 19. 

SIGNOS



"Meu signo é o da morte porém trago
Uma balança interior uma aliança
Da solidão com as coisas exteriores"


Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Lisboa: Caminho, 2004, p. 40. 

Sunday, November 24, 2013

ASSIM AS MEMÓRIAS



"Habitamos um corpo em perigo.
Com um pouco de sorte
estas folhas fatigadas pela chuva irão permanecer
(dezembro vai começar
os trabalhos do inverno e
o sol menos quente: assim
as memórias.)
Deixemos em paz os jardins a mão no bolso esquerdo
não tarda a esquecer. 
Dormir é deixar a saliva viajar pelos teus livros
naturalmente
saberei julgar à maneira de um canteiro
negligente
trabalhando sobre a pedra. 
Que procuras? (a missa acabou
dezembro vai começar e
o sol menos quente.
Podemos partir para a guerra?) podemos partir?"


João Miguel Fernandes Jorge, "Vinte e Nove Poemas", in Obra Poética, vol. 3, 2ª ed.,  Lisboa: Presença, 1988, p. 58. 

Saturday, November 23, 2013

BOMBARDA



"A civilização nasceu, como um sino, no interior do invólucro de matéria mais grosseira, mais vulgar: falsidade, prepotência, expansão ilimitada de todos os eus individuais, de todos os povos, foram esse invólucro. É tempo, agora, de o retirar? O metal fundido está solidificado, as tendências boas, proveitosas, os hábitos da alma nobre tornaram-se tão seguros e gerais que já não seja preciso mais apoio na metafísica e nos erros das religiões, nem rudezas e violências como o mais poderoso aglutinante entre homem e homem, povo e povo? Para responder a esta pergunta, já nenhum aceno de um deus nos pode ser útil: aí, é a nossa própria inteligência que tem de decidir."


Friedrich Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, trad. Paulo Osório de Castro, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1997, fr. 245, pp. 225- 226. 

Friday, November 22, 2013

EXISTIR



"Só desejo o comêço do amor
em que o tempo não existe. 
O tempo fica do lado de fora. 
O comêço do amor, por dentro, permanece eterno, 
tal como o último momento antes da morte."


António Barahona, Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea, Lisboa: Averno, 2011, p. 183. 

Thursday, November 21, 2013

EXALTANTE



"O fatum é um pensamento exaltante, para quem compreende que faz parte dele."


Friedrich Nietzsche, A Vontade de Poder, vol. I, trad. Isabel Henninger Ferreira, Porto: Rés Editora, 2004, p. 148. 

Wednesday, November 20, 2013

PRIMORDIAL



"Os portugueses descobriram o mundo moderno. As outras nações moldaram-no. Tiveram a virtude primordial de serem secundárias. 

Quando um admirador de Marconi fala de ondas hertzianas, parece falar de algo criado por Marconi, ignorando que existe um homem chamado Hertz. É isto a civilização."


Fernando Pessoa, Heróstrato e a Busca da Imortalidade, ed. Richard Zenith, trad. Manuela Rocha, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 121. 

Monday, November 18, 2013

O REGRESSO



"Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar, 
o passado no passado, o presente no presente, 
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho. 

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama. 
Para trás ficam portos, ilhas, lembranças, 
cidades, estações do ano. 
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca."


Manuel António Pina, Todas as Palavras - poesia reunida, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 351. 

Sunday, November 17, 2013

TEMER



"O animal teme a morte porque vive, 
O homem também, e porque a desconhece.
Só a mim me é dado com horror
Temê-la por lhe conhecer a inteira
Extensão e mistério, por medir
O infinito seu de escuridão."


Fernando Pessoa, Fausto Tragédia Subjectiva, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 168.