Tuesday, January 31, 2017

A CONFIANÇA



"Tu não perguntes (é-nos proibido pelos deuses saber) que fim a mim, a ti, 
os deuses deram, Leucónoe, nem ensaies cálculos babilónicos. 
Como é melhor suportar o que quer que o futuro reserve, 
quer Júpiter muitos invernos nos tenha concedido, quer um último, 

este que agora o tirreno mar quebranta ante os rochedos que se lhe opõem.
Sê sensata, decanta o vinho, e faz de uma longa esperança
um breve momento. Enquanto falamos, já invejoso terá fugido o tempo:
colhe cada dia, confiando o menos possível no amanhã."


Horácio, Odes, I. 11, trad. Pedro Braga Falcão, Lisboa: Cotovia, 2008, p. 69. 

Monday, January 30, 2017

CABEDAIS



"[Fonte Nova:] Muito me confunde o que ouço a este meu vezinho. Basta também que a Natureza é trapaceira como mercador tramposo, que com pouco cabedal vai contentando a muitos acredores!"

D. Francisco Manuel de Melo, A Visita das Fontes, ed. Pedro Serra, Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 50. 

Sunday, January 29, 2017

ERA



"[Fonte Velha:] Graças a Deus que somos em uma era em que os homens se calam como pedras e as pedras falam como gente."

D. Francisco Manuel de Melo, A Visita das Fontes, ed. Pedro Serra, Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 40. 

HORA





"[Relógio da Cidade:] Dir-vos-ei: todos somos relógios e sabemos que não há cousa que não tenha sua hora no mundo. O rir, o chorar, o trabalho e o descanso; a fome e a fartura, tudo tem sua hora. Donde procede que não é fora de rezão que os homens tratem talvez de seu cómodo e tal de seu adiantamento, pois é certo que, para se regerem e derigirem a bons fins e a termos úteis que deu Deus entendimento que negou às alimárias, a quem deu menos, porque delas não queria receber tanto. Mas, contudo, já se sabe que é demasiada fanfarronice que o ditoso não queira algua hora ser mofino, persuadido de que as boas andanças são morgado que haja de andar em sua família para sempre, sem que se possa perder nem alhear. Por isso se diz, vulgarmente, que tudo tem sua hora."



D. Francisco Manuel de Melo, Os Relógios Falantes, ed. Pedro Serra, Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 22. 

Saturday, January 28, 2017

CURRAL DO CONSELHO


"Senhor: Já ouviríeis a graciosa indecência com que disse um de nossos discretos que a imaginação era curral do conselho donde, por não ter portas, todo o animal tinha entrada. Se isto algua vez foi verdade, na imaginação dos solitários se verefica. Persuado-me que, do próprio modo que ao homem só o envestem seus inimigos, ao homem só o assaltam seus pensamentos, entre os quais não há nenhum tão cobarde que deixe de fazer sorte naquele a quem ninguém defende. Todavia não sei que feitiços nos dá a solidão que, apesar desses inconvenientes, quem ua vez a experimentou sempre a procura. Será porque, nela, ente o entendimento e o céu há pequeno intervalo, larga distância entre a vida e o perigo, quando racionalmente se busca e sabiamente se dispende?"

D. Francisco Manuel de Melo, Os Relógios Falantes, ed. Pedro Serra, Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 3. 

Thursday, January 26, 2017

VAPOROSO

(Galeria Sabauda, Turim)

"Nunca esquecerei a alegria daquele homem. À sua janela, ele pairava acima das pessoas que passavam, apressadas e inquietas. Uma benéfica ilusão, semelhante a uma nuvem vaporosa, ocultava-lhe o mundo real e torpe. E eu lembrei-me desta frase tão verdadeira - de Goëthe, segundo creio - «Os colecionadores são pessoas felizes»."

Stefan Zweig, A coleção invisível, trad. Alice Ogando, 2ª ed., Porto: Livraria Civilização, 1938, p. 201. 

Tuesday, January 24, 2017

CONTÍNUO


"Em baixo, sentia a água marulhar docemente e, por cima de mim, imperceptivelmente, o branco derramamento desse mundo. Pouco a pouco, o murmúrio insinuou-se nas minhas veias e perdi a noção da existência. Não sabia já se esta respiração era a minha ou se eram as pancadas do coração do navio; estava transportado e aniquilado pelo contínuo murmúrio do mundo nocturno."

 Stefan Zweig, Amok, 2ª ed., trad. Alice Ogando, Porto: Livraria Civilização, 1938, p. 14. 

Monday, January 23, 2017

O QUE SOMOS


"Então o que somos nós? O que é isto que nos rodeia, nos cria, nos sustenta? Toda a natureza é uma sombra, ou vazia ou ilusória. Nem poderei dizer quais são os que mais me irritam, se aqueles que nos não permitem saber nada, se os que nem sequer nos deixam saber que nada sabemos!"

Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio (carta 88), 2ª ed., trad. J. A. Segurado e Campos, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 429. 

Sunday, January 22, 2017

ESPLENDOR


"Esta luz das estrelas, de uma brancura gelada e de uma claridade luminosa, quase me fazia mal; e eu queria esconder-me na sombra, estender-me numa esteira, não sentir mais em mim, simplesmente sobre mim, esse esplendor refletido pelas coisas, tal como se olha para uma paisagem de dentro de uma sala em obscuridade."

Stefan Zweig, Amok, 2ª ed., trad. Alice Ogando, Porto: Livraria Civilização, 1938, p. 13. 

Saturday, January 21, 2017

FLUTUAR



"O grande fluxo do oceano põe-me em movimento, 
faz-me flutuar.
Flutuo como a alga à superfície das águas. 
E a abóbada celeste abafa-me e o ar violento
abala o meu espírito
e atira-me sobre a poeira. 
E eu tremo de alegria."


"Cinco Poemas Esquimós", in Herberto Helder, O Bebedor Nocturno - poemas mudados para português, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 165. 

Friday, January 20, 2017

FOSSE



"Fosse o mundo um paraíso...
- paraíso de verdade! -
morrerias sem saber
o que é a felicidade..."


Mário Quintana, "A Cor do Invisível", in Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 879. 

Thursday, January 19, 2017

MERGULHO



"Bom é mergulhar, bom, 
ó deus meu amigo, 
é banhar-me diante de ti. 
Adivinhas-te quando se molha
minha túnica de fino linho real. 
E juntos entramos nas águas, 
e à tua frente eu saio das águas, 
agarrando entre os dedos
um estupendo peixe encarnado. 
- Olha para mim."

"Poemas do Antigo Egipto", in Herberto Helder, O Bebedor Nocturno - poemas mudados para português, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 12. 

Wednesday, January 18, 2017

IMPETU



"Traz a tua impetuosidade
À casa da tua amada, 
Tu que és o orgulho da coudelaria do rei, 
Escolhido de entre uma centena de puros-sangues, 
Treinado com ração especial, 
Que partes em galope sem igual
À mera menção da palavra estribo, 
Sem mesmo o tratador
(Que é hitita)
Poder segurar-te. 
Como ele conhece bem o coração dela
A que há-de ficar sempre ao seu lado."


Poemas de Amor do Antigo Egipto, trad. Helder Moura Pereira, 2ª ed. rev., Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, pp. 65-66. 

Tuesday, January 17, 2017

PARÁBOLA



"Há apenas um ano ou dois, encontrando-me numa das colinas que escavávamos, em Nimrud, observava um dos espantalhos locais, um velho árabe com uma mão-cheia de pedras e uma fisga, defendendo as searas dos bandos de pássaros predatórios. Vendo como a sua pontaria era certeira e quanto a sua arma era mortal, entendi pela primeira vez que os dados do destino haviam sido lançados contra Golias! Desde o princípio, David estivera em melhor posição - era ele o homem que possuía a arma de longo alcance, contra o homem que não possuía arma alguma. A moral dessa história não é bem a do pequeno que vence o grande, mas a do cérebro que vence o músculo."


Agatha Christie, Autobiografia, trad. Maria Helena Trigueiros, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 55. 

Sunday, January 15, 2017

ALICERCES


"No meu entender, a vida consiste em três partes: o absorvente e habitualmente agradável presente, que corre minuto a minuto com velocidade fatal; o futuro, obscuro e incerto, em relação ao qual podemos imaginar grande número de planos interessantes, e se insólitos e improváveis tanto melhor, visto que - como nada virá a ser como esperávamos que fosse - ao menos nos divertimos enquanto planeávamos; e a terceira parte, o passado, as recordações e as realidades que são os alicerces da vida presente e que nos surgem de repente, trazidas por um perfume, pela forma de uma colina, qualquer canção antiga, trivialidade que de súbito nos fazem murmurar: - Eu lembro-me... - com um peculiar e quase inexplicável prazer."

Agatha Christie, Autobiografia, trad. Maria Helena Trigueiros, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., pp. 8-9.

Saturday, January 14, 2017

PORTADOR DA LUZ



"E então, um arcanjo, lançando um olhar suspeitoso ao viandante, começará a abrir lentamente, deixando entreve lá dentro a luz eterna. Eu terei dado o primeiro passo para encontrar, uma alegria jamais conhecida ter-me-á inundado o coração, as santas lágrimas banhando as faces e ele estará atrás de mim, oh, como poderia deixar passar o último dia do prazo? Estará atrás de mim, sem que eu o veja, como o seu horrível sorriso; com a mão fará sinal a dizer que não; um sinal convencional para dizer que eu lhe pertenço. E troçarás de maneira bem ordinária do arcanjo, burlando-se do seu erro. De tal modo que sentirei que uma pedra atada a uma perna me impede de andar e os abismos em baixo abrir-se-ão, enquanto os portais se voltarão a fechar lentamente , abandonando-me à noite. 
Então, apenas com os pés, ele subirá para o meu rosto, calcando-me brutalmente. E ninguém, em todo o universo, ouvirá os meus gritos. Ele rir-se-á de prazer, galopará em cima de mim, para cima, para baixo, dizendo-me: «Vomita, vomita, deita fora essa tua alma negra!»"


Dino Buzzati, "O sótão", in Pânico no Scala, trad. Carlos Leite, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2007, p. 251. 

Friday, January 13, 2017

IDADE DE OURO



"A grande migração das imagens - havia séculos - 
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos

sem paz e sem lei, sem amos nem destino,"


Manuel Gusmão, migrações do fogo, Lisboa: Caminho, 2004, p. 40. 

Thursday, January 12, 2017

ENTREVISTO



"Esperamos agora que se afaste
de nós o que se torna no sereno
movimento que fica preso à margem
da infância, outro tecido, junto ao mesmo

sinal do que ali seja tão fluido
que atinja uma outra margem, se procura
o que se perde e esquece como o súbito
corpo que fosse dado à mesma fuga

em que se alcance agora este limite
sujeito ao tempo, leve calendário
apenas entrevisto numa firme

e secreta vontade que recolha 
o gesto de tecer que está parado
na última superfície destas horas."


Fernando Guimarães, Lições de Trevas, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 84. 

Wednesday, January 11, 2017

TRÂNSITOS



"Trânsitos: pestanejar do instante. 
O mundo perde corpo, 
é uma aparição, é quatro choupos, 
quatro moradas melodias."


Octavio Paz, Árvore Adentro, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa: Vega, 1994, p. 94. 

Tuesday, January 10, 2017

IMPRECISA



"Que estranha vida, portanto. E sem poder apresentar uma reclamação, nem tentar remédios, nem encontrar uma explicação que liberte os espíritos. E sem poder sequer convencer os outros, das outras casas, que não sabem. Mas que coisa será, pois, esta gota, perguntam com exasperante boa fé, um rato talvez? Um sapo saído das caves? Não exactamente. 
E então, insistem, será por acaso uma alegoria? Quer-se-á, por assim dizer, simbolizar a morte? Ou algum perigo? Ou os anos que passam? Nada a fazer, senhores: é simplesmente uma gota, só que sobe pelas escadas. 
Ou, mais subtilmente, pretende-se figurar os sonhos e as quimeras? As terras imprecisas e longínquas onde se presume a felicidade? Algo poético, em suma? Não, absolutamente não. 
Ou os lugares mais longínquos ainda, no fim do mundo, aonde nunca chegaremos? Mas não, digo-vos, não é uma brincadeira, não há duplos sentidos, trata-se, felizmente, apenas duma gota de água, tanto quanto é dado entender, que de noite vem pelas escadas acima. Tic, tic, misteriosamente, de degrau em degrau. E é por isso que se tem medo."


Dino Buzzati, "Uma Gota", in Pânico no Scala, trad. Carlos Leite, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2007, pp. 97-98

Sunday, January 8, 2017

O FORTUNATOS NIMIUM



"Nós quase não sabemos quando estamos bem, e isto é uma arma de dois gumes. Porque se o soubéssemos, talvez soubéssemos também quando estamos mal, e eu pensei mais de uma vez que há tantos ignorantes de um caso como do outro.
Quem escreveu O fortunatos nimium sua si bona norint agricolas podia ter escrito com a mesma verdade «O infortunatos nimium sua si mala norint» e poucos existem entre nós que não estejam protegidos contra a mais aguda dor pela nossa incapacidade para ver o que fizemos, o que estamos a sofrer e o que verdadeiramente somos. Vivamos agradecidos aos espelhos por só nos revelarem a nossa aparência."


Samuel Butler, Erewhon, trad. Franco de Sousa, Lisboa: Livros do Brasil, 2007, p. 25. 

Saturday, January 7, 2017

REVÉRBERO


"Gaspari observava. Já não se tratava da ravina das brincadeiras dos rapazes, nem dos medíocres cumes atarracados, nem da estrada que subia o vale, nem do hotel, nem do campo de ténis vermelho. Viu, por baixo de si, despenhadeiros sem fim, diferentes de qualquer recordação, que se precipitavam para mares de florestas; viu mais longe o trémulo revérbero dos desertos e mais longe ainda outras luzes, outros sinais confusos, indicando o mistério do mundo. E aqui à sua frente, do alto da ribanceira, estava uma sinistra fortaleza; muralhas sombrias a suportavam e os telhados em equilíbrio estavam coroados por caveiras, esbranquiçadas pelo sol, que pareciam rir-se. O país das maldições e dos mitos, as solidões virgens, a última verdade concedida aos nossos sonhos!"

Dino Buzzati, "O Burguês Enfeitiçado", in Pânico no Scala, trad. Carlos Leite, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2007, pp. 53-54. 

Thursday, January 5, 2017

ACORDAR



"Permanecimos en silencio, fumando. La luz del balcón era cada vez más débil; apenas se oían pasar coches. Yo me sentía a gusto, un poco ebrio, casi feliz. Pensé: «Se acuerda por lo mismo, que yo me acuerdo de mí padre y Ferlosio del suyo y Miquel Aguirre del suyo y Bolaño de sus amigos latinoamericanos, todos soldados muertos en guerras de antemano perdidas: se acuerda porque, aunque hace sesenta años que fallecieron, todavía no están muertos, precisamente porque él se acuerda de ellos. O quizá no es él quien se acuerda de ellos, sino ellos los que se aferran a él, para no estar del todo muertos». «Pero cuando Miralles muera - pensé -, sus amigos también morirán del todo porque no habrá nadie que se acuerde de ellos para que no mueran."


Javier Cercas, Soldados de Salamina, Bacelona, Penguin Random House/De bolsillo, 2016, p. 204. 

Wednesday, January 4, 2017

VIGÍLIA



"Vive-se da rapina. O hóspede não está a salvo do hospedeiro,
nem o sogro do genro: até a afeição entre irmãos é rara. 
O homem maquina a morte da esposa, esta a do marido.
As aterradoras madrastas misturam amarelentos venenos. 
O filho, antes do tempo, inquire sobre a idade do pai.
O respeito jaz vencido, e a virgem Astreia foi a última
dos seres celestes a deixar as terras encharcadas de sangue."


Ovídio, Metamorfoses, I, 144-150, 2ª ed., trad. Paulo Farmhouse Alberto, Lisboa: Cotovia, 2010, p. 39. 

Tuesday, January 3, 2017

HOMEM DE AÇÃO



"- Pues es una lástima - dijo Bolaño -. Un hombre de acción es un escritor frustrado. Si don quijote hubiera escrito un solo libro de caballería nunca hubiera sido don Quijote, y si no hubiese aprendido a escribir ahora estaría pegando tiros con las FARC. Además, un escritor de verdad nunca deja de ser un escritor. Aunque no escriba."

Javier Cercas, Soldados de Salamina, Bacelona, Penguin Random House/De bolsillo, 2016, p. 155. 

Monday, January 2, 2017

NEVE



"Não, o ano tinha voltado.
Enchia o quarto todo
e quase o tocavam olhares meus. 
O tempo, sem a nossa ajuda, 
havia disposto, em ordem idêntica à de ontem, 
casas na rua vazia, 
neve sobre essas casas, 
silêncio sobre neve caída."


Octavio Paz, Árvore Adentro, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa: Vega, 1994, p. 104. 

Sunday, January 1, 2017

PRIMEIRO DE JANEIRO



"As portas do ano rasgam-se, 
tal as da linguagem, 
para o desconhecido.
Ontem à noite, disseste-me: 
                                          amanhã,
haverá que esboçar sinais, 
desenhar paisagens, tecer a trama
sobre a dupla página
do papel e do dia.
Amanhã haverá que inventar, 
de novo, 
a realidade do mundo. 

Já tarde, abri os olhos.
No instante d eum instante, 
senti, como o asteca
a espreitar 
p'los penedos do promontório,
p'las gretas de horizonte, 
o incerto regresso do tempo."


Octavio Paz, Árvore Adentro, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa: Vega, 1994, p. 104.